sábado, 19 de junho de 2010

Foucault cumprimenta a alma – na matrícula

By Paulo Ghiraldelli
I
Pronto para a morte, Sócrates a saudou dizendo que ela seria sua libertação do corpo. Modificada, essa expressão de Sócrates poderia endossar um platonismo rasteiro, que afirmaria algo como “o corpo é a prisão da alma”. Os cristãos preferiram não falar em prisão. Douraram a pílula dizendo que “o corpo é o templo da alma”. Por sua vez, o nietzschiano Foucault veio na contramão para dizer que “a alma é a prisão do corpo”.
A alma é a prisão do corpo? Como? O que Foucault quis dizer com uma frase dessas, que não deixa de ser esquisita? O que pensar?
O trecho em que Foucault expõe essa idéia está em Disciplina e punição: o nascimento da prisão, e é parte um parágrafo que dá o serviço:
“(…) Mas não vamos errar: não é este o homem real, o objeto do conhecimento, da reflexão filosófica ou da intervenção tecnológica, que foi substituído pela alma, a ilusão dos teólogos, é já ele próprio o efeito de uma subjetivação mais profunda do que ele próprio. Uma “alma” o habita e o traz à existência, a qual é ela própria um fator da dominação que o poder exerce sobre o corpo. A alma é o efeito do instrumento de uma anatomia política; a alma é a prisão do corpo” .
Foucault diz que a alma é produzida. Antes havia o corpo. Mas quando convocaram o corpo para ser indivíduo, eis que o chamaram já como sujeito e, assim, como quem deveria poder dizer “não, não vou” ou “sim, vou”. Quando o corpo começou a esboçar esse comportamento, acreditando no que lhe contaram, ou seja, na existência da liberdade, já o fez por meio da alma – eis que ela, recém nascida, abraçou o corpo e passou a conduzi-lo. Ao ser convocado como livre, o indivíduo respondeu não pelo corpo, a quem foi dirigida a pergunta, e sim pela alma. Mesmo jovem, a xereta se intrometeu na conversa. Mas isso porque a conversa já era mesmo com ela. A conversa era com quem já estava sendo tratado como indivíduo e, então, este deveria mesmo responder pela boca da alma. Seria estranho para quem iniciou a conversa que o corpo começasse a falar. Corpo não fala. A boca mexe, ela é corpo, mas quem fala é a alma. Não é assim que nós dizemos, na civilização?
O caso todo fica claro se notarmos que ao requisitar do corpo que viesse à luz como indivíduo, nesse exato momento, todas as ações do poder já estavam se desenvolvendo de modo a produzir quem iria responder – a alma. Por que digo que “fica claro”? Está claro, eu digo, nos textos de Foucault. Afinal, quem é que requisita a todos nós como indivíduos, ou seja, como sujeitos modernos? São as instituições nas quais adentramos, exatamente para sairmos delas, se sairmos, como indivíduos autênticos. Foucault fala de hospitais, penitenciárias, clínicas e várias outras, mas ele não se esquece de uma das principais, a escola.
II
Quando entramos na escola, muitos dizem que temos alma. Mas não é tão verdade assim. Até temos sim, e Foucault lembra isso no trecho citado ao dizer que quando somos requisitados já ocorreu uma subjetivação profunda, mas no âmbito da escola, ainda somos uma alma fraquinha. Entramos na escola como corpo. Somos levados lá na escola como corpos. Uma vez na escola, caímos nas malhas de algo chamado pedagogia. Suas regras não são diferentes do que nossos corpos criaram. São dizeres de “sim” e de “não” que nossos corpos inventaram. Uma vez tecidas sob o nome de “pedagogia”, ficam mais pomposas e se distribuem pelos sons emitidos pelos professores, pela maneira como a arquitetura da escola nos dispõe e pela legislação inerente aos estatutos dos estabelecimentos. Tudo isso é pedagogia. Ganha nomes particulares como currículo, laboratório, recreio, tarefa, prova, etc.
Na escola, sob a pedagogia, para tudo que nosso corpo quer temos de encontrar justificações. Temos de justificar e, depois, somos cobrados de modo a dizer se a justificação merece um “sim” ou um “não”. O outro lado da moeda liberdade que nos oferecem na escola é a responsabilidade. Quando estamos para sair da escola, percebemos que estamos mais pesados. Nosso corpo se desenvolveu? Sim! Mas o peso é bem maior que aquele dado pelo corpo. Saímos mais pesados porque ali dentro da escola ganhamos um regime para a alma. Ela foi sendo inflada por meio de ditos, não-ditos e desditos. Mas, também, é evidente, pelas punições, castigos e elogios que, enfim, nos deram responsabilidade.  A alma é moldada por isso tudo, mas seu recheio é a culpa.
Nosso corpo sai da escola preso pela alma. Ele sente agora que caminhará eternamente a partir do comando do tecido da alma. Este tecido se enerva a partir da culpa e, nos melhores, a partir do arrependimento. Disseram que era responsabilidade. Mas, sabe-se bem, não há responsabilidade alguma – eis aí uma palavra sem substância. Na hora que olhamos para alma, vemos inúmeras garrinhas de culpa que mordem veias, nervos e órgãos do corpo. A alma não prende o corpo “por fora”. Ela é como um musgo que prende a casa ao se distribuir por todas as suas paredes. E onde há frestas, esse musgo se enfia e tudo preenche. É assim que a alma prende o corpo. Qualquer tentativa de tirar o musgo, e eis que pedaços de carne, ossos e sangue vem junto. O corpo pode morrer se tentamos nos livrar da alma.
Quando o corpo está já plenamente preso pela alma, podemos sair da escola e, enquanto sujeitos (como sujeitos morais – pessoas), podemos nos proclamar indivíduos livres. O processo escolar pelo qual passamos recebe o nome, na terminologia de Foucault estampada em Vigiar e punir e no primeiro volume da História da Sexualidade, de “anátomo política do corpo”. Inicia-se então outro processo, o da “biopolítica da população”. Ambos compõem as práticas de poder que produzem a modernidade. Nasce aí, com a noção foucaultiana de modernidade, o que ele mesmo denomina de “sociedade disciplinar”.
Passamos diante do Estado e ele nos batiza cidadãos. Ganhamos números para respondermos à previdência social, ao emprego, ao fisco, ao trânsito, ao matrimônio e ao túmulo. Nossos esposos, uma vez viúvos, pegam esse número para reivindicar a parte de nossas aposentadorias. Esse número compõe ainda as estatísticas para os cálculos de vida média da nação. Ele medirá o “desenvolvimento” da nação.
O número nos devolve à abstração que a condição de indivíduo parecia nos ter tirado. Só nos tornamos números porque somos corpos presos por identificação clara, dada por nossa alma. Cada alma fala e se identifica. Ao dizer o nome e assumir toda e qualquer culpa que se está distribuindo naquele momento, ganha também um número, volta ao campo abstrato. Dilui-se entre tantos outros números.
Tudo que ocorreu nessa relação entre a alma que prende o corpo enquanto responde pela condição deste de ser indivíduo, se fez por tramas do “pode” e do “não pode”. Ou seja, tramas do poder. Tudo isso são as tais ações e relações do poder.  A essa altura, então, Foucault já está longe da idéia de um poder que se faz pela política em seu sentido tradicional, a política dos partidos e das ações de governo. Foucault vê o poder na governabilidade que se produz em cada um no interior das instituições, entre elas, uma principal porque realmente se ocupa da própria requisição e produção do indivíduo, que é a escola.
III
Volto à “anátomo política do corpo”. Ela começa com a matrícula. Alguém nos pega pela mão e atende a requisição da instituição para que se cumpra um direito que é um dever, a obrigatoriedade da educação. A escola lá está, sedenta por nós.
Quando cada um senta num banco escolar, seu corpo se conforma a um espaço. Ele recebe então a matemática ou qualquer outro conhecimento, mas ninguém conta grandes mentiras ali não, pois cada coisa já vem com o nome real: disciplina. A matéria é o assunto, mas a prática do assunto é a disciplina. Você passa pela grade curricular. Grade! E vai sendo disciplinado por meio da Matemática, Português, Geografia, História e tudo o mais.
A sala de aula é o lugar par excellence dessa disciplinarização. Conformado o corpo ao banco escolar, o corpo responde a chamada. Diz seu nome e já ganha um número. Começa então o ritual que, no seu todo, é o que os educadores irão dizer, ao final, que ocorreu. Ocorreu o exercer da pedagogia. Serva ou não da psicologia, essa pedagogia pode receber inúmeros nomes, pode-se falar que ela é construtivista ou libertadora. Uns a batizam com nomes tais como Vigotsky ou Piaget, outros preferem usar de auto-ajuda ou seja lá o que for que alunos de pós-graduação possam inventar. Mas, antes de tudo, a pedagogia é uma vitamina especial, que cria os ossos do corpo como paredes que devem ficar porosas de modo que o musgo possa se agarrar cada vez mais a elas. O musgo da alma precisa preencher tudo. Em todo cantinho ele precisa colocar aquilo que Nietzsche dizia que faz um homem ser homem: a culpa.
Quando você vai com seu corpinho fazer a matrícula, é para que você saia depois, anos depois, como um bípede-sem-penas que tenha alma. “Você não tem alma?” – perguntarão todos a você. “Você não é humano?” – também perguntarão isso. Todos cobrarão de você que abandone o Grilo Falante e não mais se comportem com bonecos de pau, só com corpo, mas com consciência, ou seja, com alma. Ora, mas você vai agir com alma e pela alma. Ela é o musgo inflado que não pode mais ser tirada do corpo sem que este venha a perecer.

©2010 Paulo Ghiraldelli Jr. filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Mais sobre Foucault aqui: Foucault e a educação – como?

Um comentário:

Luciano Azevedo disse...

Ótimo post. Conheci o Ghiraldelli através de um vídeo que adquiri para uma aula no 2º ano. Em seguida, procurei o site e assim, entrei em contato com suas ideias. Essa reflexão, a partir da obra do Foucault, sobre a instituição escolar e os mecanismos de subjetivação é bastante atual. Obrigado por oportunizar o texto. Ótimo domingo!

LinkWithin

Blog Widget by LinkWithin