segunda-feira, 28 de junho de 2010

Razão e instinto, por José Francisco Botelho

O prazer de viver e o fatalismo da existência iluminam a obra original do pensador alemão que marcou o século 20

 

Eternamente insatisfeito, eternamente incompreendido e provocador até o último fio do bigode, o alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi o maior enfant terrible da filosofia ocidental nos últimos dois séculos. Exemplo perfeito do pensador que realmente diz o que pensa sem máscaras nem firulas – uma virtude que hoje anda fora de moda –, ele cortejou o escândalo, brincou com a loucura e, por causa de sua teimosia, amargou uma vida solitária e infeliz. Sua recompensa é o fascínio perturbador que continua exercendo sobre gerações de inquietos leitores mais de 100 anos após sua morte: pode-se discordar de suas opiniões, mas é impossível não se enredar em sua prosa temperamental e vertiginosa. Escritor, poeta, músico e crítico da cultura, Nietzsche foi acima de tudo um pensador hiperbólico – em suas paixões, em seus rancores, em sua lucidez e em seu delírio.

A posteridade o recorda principalmente por suas obsessivas diatribes contra a moral cristã – é de sua lavra aquele mantra religiosamente repetido pelo ateísmo moderno: “Deus morreu”. A sanha antimoralista de Nietzsche domina seus últimos escritos, recheados de grandiloquência e amargura; a leitura de suas obras de juventude, contudo, mostra que ele foi muito mais que um profeta do niilismo e arauto da morte divina. A força original de seu pensamento é a revolta contra os exageros do racionalismo – sua controversa façanha foi atacar frontalmente a ideia de que a razão humana, por meio da lógica e do bom senso, possa estabelecer verdades absolutas e compreender até as profundezas mais obscuras do próprio homem. Contra esse fundamentalismo do intelecto, Nietzsche propôs a madura aceitação do que exista de irracional no universo e em nós mesmos – helenista eufórico, ele se inspirou na terrível sabedoria das tragédias gregas para elaborar sua mistura de pessimismo e afirmação da vida. Em vez do rigor religioso ou da fé científica, ele apregoou a liturgia do fenômeno estético, espécie de misticismo sem Deus, que vê na arte a única redenção possível para o ser humano – essa criatura estranha e fantástica que Nietzsche comparou, em uma de suas passagens famosas, a “uma corda atada sobre um abismo”.


Nietzsche 

Influente como poucos, o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) iria não apenas marcar a história da filosofia mas também a estética e a política de nossa era.

Anticristo?  

Ironicamente, o autoproclamado Anticristo da filosofia veio ao mundo em uma família de tradição religiosa. Era filho, neto e sobrinho de pastores protestantes – e ele próprio cogitou seguir essa carreira. Ainda criança, testemunhou a morte precoce do pai: vitimado por uma obscura doença nervosa, Karl Ludwig Nietzsche perdeu a lucidez e a vida aos 34 anos de idade. A moléstia foi misteriosamente diagnosticada como “amolecimento do cérebro”. O pequeno Nietzsche se convenceu de que aquele era um mal hereditário, vendo na morte do pai um augúrio de seu próprio destino.

Por volta dos 15 anos, o filho do pastor trocou os salmos religiosos pelos clássicos gregos. Alardeando sua perda de fé, brigou com a família, tornou-se um erudito precoce e, com apenas 24 anos, virou professor de língua e literatura grega na Universidade de Basileia. Em 1870, foi convocado pelo exército, servindo como assistente médico no campo de batalha, durante a Guerra Franco-Prussiana (experiência que arruinou a saúde do jovem gênio livresco). Enquanto cuidava de feridos, sob o estrondo dos canhões, ele começou a escrever sua primeira obra-prima: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. Publicado em 1872, o livro é um fascinante mergulho no espírito da antiga civilização grega, escrito numa prosa deliciosamente estranha, em que a reflexão filosófica flerta descaradamente com a poesia.

Para Nietzsche, as principais tragédias gregas – escritas por autores como Ésquilo e Sófocles no século 5 a.C. – contêm uma imagem profética da condição humana. Os heróis trágicos, como Édipo, Antígona e Prometeu, são levados à desgraça e à destruição por suas próprias virtudes. Contudo, em uma tragédia que se preze, a catástrofe não leva ao desespero total, mas a um misterioso consolo metafísico. A essência do mundo trágico está na capacidade de sorrir enquanto se mergulha no coração das trevas, e é isso que Nietzsche tenta resgatar, como antídoto para as mazelas e fraquezas de sua própria época: somos todos personagens de uma grande tragédia cósmica, e devemos viver de acordo com nossos papéis, sem recair no escapismo ou na lamúria. A chave da sabedoria está em aceitar o lado selvagem e transitório da vida – o que não significa renunciar a ela. Esse perigoso equilíbrio entre o prazer de viver e o fatalismo existencial é regido, na filosofia de Nietzsche, por duas figuras ao mesmo tempo opostas e complementares: os deuses Apolo e Dionísio, enfezados irmãos olímpicos, que entre socos e abraços regulam o estado de espírito da humanidade.

Na obra de Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco são dois impulsos ou visões de mundo que, ao longo dos séculos, se digladiam e se completam, determinando a postura humana diante da vida em diferentes épocas e lugares – e é na produção artística que esses polos se manifestam de forma mais clara. Na mitologia grega, Apolo é o deus da harmonia, da ordem, do comedimento, da civilização. Para Nietzsche, essa divindade altiva, serena e jovial representa a autoconfiança do ser humano e o desejo de conhecer e transformar humanamente o mundo. Sob a inspiração de Apolo, os homens tentam domar o caos do universo com a força da imaginação. O espírito apolíneo é o que separa o ser humano da natureza anárquica, e o leva a criar seu próprio mundo de ordem e beleza, recalcando o lado sombrio da existência. Escreve o poetafilósofo: “Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância – e que outra coisa é o homem? –, tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza sua própria essência. Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, de algum modo, tornam a existência digna de ser vivida”. O apolíneo leva o homem a desafiar o cosmos desumano e a criar a mais doce das ilusões – a vida em civilização. O melhor exemplo desse impulso são as artes visuais da Grécia antiga, com seu amor pelas proporções justas e por sentimentos bem dosados.

De tempos em tempos, contudo, o límpido reino de Apolo é invadido por seu irmão escandaloso e mal comportado. Deus da embriaguez, do êxtase e das emoções descontroladas, Dionísio é o símbolo da desmedida, do reencontro com a pulsão caótica da natureza. Pintores e escultores o representam com um sorriso ora maligno, ora sensual, e uma infalível taça de vinho nas mãos; nos tempos antigos, seus adoradores costumavam entregar-se a épicas bebedeiras e loucas orgias à luz do luar. Se o apolíneo tenta imortalizar as aparências criadas pelo homem, o dionisíaco quer rasgar o véu das ilusões e colocar-nos em contato com o verdadeiro fundamento da vida – o eterno ciclo de destruição e recriação do universo, regido por forças incompreensíveis, além do nosso entendimento. Dionísio traz a intuição de que todas as regras humanas, como a moralidade, são convenções (úteis ou não), abrindo-nos um espaço que está “além do bem e do mal” – expressão que dá título a outra obra famosa de Nietzsche. Mistura de terror e êxtase, em que a mente brinca com sua própria aniquilação, o dionisíaco dissolve a fronteira entre os indivíduos, o limite entre a cultura e a natureza, criando a experiência mística da unidade primordial. O homem vê seu próprio limite e é desafiado a intuir o que está além do humano. “Também a arte dionisíaca quer convencer-nos do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas”, escreve o autor em O Nascimento da Tragédia. “Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce está condenado a um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual – e não devemos, todavia, estarrecer-nos... Nós mesmos somos, por breves instantes, o ser primordial, e sentimos seu indomável prazer de existir.” A expressão máxima do dionisíaco é a música: arte sem formas, composta por emoções puras e desencarnadas. Na tragédia grega – que celebrava ao mesmo tempo a individualidade humana e o poder da fatalidade cósmica –, as forças dos dois irmãos olímpicos se contrabalançaram perfeitamente. Um belo e rápido equilíbrio, que existiu por um instante na história e depois desapareceu para não mais voltar.

Perigos do intelecto

O “homem trágico”, modelo de conduta para Nietzsche, é aquele que conhece os limites do entendimento humano e, contudo, não perde a libido pela vida. Mantém os olhos alegremente fixos no abismo, oscilando entre a embriaguez e a forma. Para Nietzsche, essa difícil simetria foi rompida pelo triunfo do racionalismo, que ocorreu com a filosofia de Sócrates e Platão no século 4 a.C. Com eles, nasceu uma degeneração do apolíneo: o “homem teórico” que rechaça a sabedoria dionisíaca e só aprecia aquilo que pode compreender. Renunciando ao mistério, ele põe suas supostas verdades acima dos prazeres indecifráveis da arte e da vida. Basta uma rápida reflexão sobre nosso próprio tempo para constatarmos que a tirania do homem teórico continua a atravancar nosso caminho. Ao longo do último século, quantas teorias – vindas das mais diversas áreas – tentaram convencernos de que não temos o direito de desfrutar o simples prazer de um bom livro ou de uma boa pintura? Quantos intelectos rigorosos tentaram reduzir nosso gozo estético a alguns mecanismos sociais mais ou menos suspeitos e aburguesados? Perguntas retóricas, naturalmente, pois seria impossível contabilizar essa trupe de hermeneutas tediosos cujo nome é legião.

Após O Nascimento da Tragédia, Nietzsche continuou sua cruzada contra a tirania racionalista em obras cada vez mais ácidas e mordazes, enfiando seu dedo petulante nas feridas da civilização e recusando-lhe qualquer anestésico. Sua verve explosiva acabou lhe arruinando a carreira acadêmica e afastou- o dos amigos. Sua saúde, que sempre fora frágil, deteriorou-se precocemente: atormentado por moléstias como a difteria e a sífilis, Nietzsche começou a perder a voz e a visão, deixando a vida universitária aos 34 anos. Irritado com o crescente nacionalismo germânico, renunciou à cidadania alemã e passou a viver como um pensador nômade, sem Deus e sem pátria – morando em estalagens baratas ao redor da Europa e escrevendo livros atrás de livros em meio a dores de cabeça dilacerantes, cólicas e crises de vômito. Essa descida aos infernos completou- se aos 45 anos, quando a sombra da loucura, que sempre o havia rondado, atingiu- o de forma devastadora. Certo dia, andando pelas ruas de Turim, o filósofo avistou um cocheiro que fustigava cruelmente sua montaria. Aos gritos, Nietzsche se abraçou ao pescoço do cavalo, tentando protegêlo do chicote. Depois caiu no chão, desmaiado. Havia perdido a razão, e nunca mais a recobraria – até hoje não se sabe se o colapso foi causado pela sífilis, pela genética ou por motivos mais obscuros. Nietzsche morreu em Weimar, pobre e louco, em 1900.

Cem anos após o ato final dessa tragédia, a obra de seu anti-herói desgrenhado e apátrida continua fonte inesgotável de perturbação e inspiração. Loucamente lúcido, ele continua a lançar-nos seu desafio: conseguiremos aceitar o estranho, o obscuro e o caótico em nós mesmos, sem cair no precipício? O próprio Nietzsche tropeçou em sua busca do ideal trágico: embora pregasse o equilíbrio entre Apolo e Dionísio, acabou resvalando para o lado da desmedida – prova disso é o hermetismo e a megalomania de alguns de seus últimos escritos. Mas, apesar das polêmicas sempre vivas, nem os detratores mais enfurecidos negaram a Nietzsche sua primeira e derradeira virtude: ele foi um grande escritor e expressou como poucos a fragilidade heroica do homem em um mundo nem sempre acolhedor e raramente compreensível.


Para saber mais: O Nascimento da Tragédia, Friedrich Nietzsche, Companhia de Bolso Nietzsche, Jean Granier, L&PM Pocket

Fonte:
Revista Vida Simples

domingo, 20 de junho de 2010

KANT: uma vida para Filosofia


por José Fernandes P. Júnior[1]


                       “Se Sócrates morreu pela Filosofia, Kant viveu para ela


         Immanuel Kant viveu de 1724 a 1804. Oriundo da pequena Königsberg – Prússia, cidade que na época contava com cerca de cinquenta mil habitantes[2]. “Kant vivia uma vida como ensinava”[3], escreveu R. B. Jackmann; com isso queria insinuar que sua vida era marcada por um profundo senso moral, calcada no ambiente educacional pietista que seus pais o legara. Sua existência cumpriu o transcurso de uma vida de extrema intelectualidade, regrada pela disciplina e conduta admiráveis. Quadro bem detalhado dessa disciplina e conduta foi pintado pelo biógrafo Haine: “acordar, tomar café, escrever, jantar, caminhar, tudo tinha sua hora marcada.”[4]

            Fato bem conhecido da vida de Kant era a hora de seu passeio: pontualmente, às 15:30h, fazia sua caminhada, diariamente, sempre acompanhado de seu velho criado Lampe, que, prudentemente, conduzia um grande guarda-chuva. A respeito disso, Diané Collinson nos mostra que “numa das raras ocasiões em que atrasou na sua caminhada vespertina, foi em razão, segundo nos é contado, de estar absorto na leitura de Emílio, de Rousseau.”[5] Essa rotina era tão conhecida que seus concidadãos o tinham como referência no acerto de seus relógios.
           
            Ademais, era homem de pequena estatura. Segundo Will Durant[6], não chegava a um metro e sessenta de altura. No entanto, este homenzinho de Königsber, de frágil compleição, hábitos simples e metódicos é tido como um gigante do pensamento universal.

            De saber enciclopédico, nosso filósofo produziu uma obra de larga amplitude; nas diversas áreas do conhecimento o kantismo floresce, seja na antropologia, epistemologia, metafísica, ética, estética, direito... Dentre suas obras, destacamos as suas três críticas: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790), por isso – não por acaso – é conhecido como filósofo das três críticas. No âmbito do Direito, especificamente, conforme Miguel Reale, “o grande filósofo tratou deste em várias obras”[7], sendo essa temática aprofundada em Metafísica dos Costumes [Die Metaphysik der Sitten], obra dividida em duas partes: a doutrina do direito [Rechtslehre] e a doutrina da virtude [Ingendlehe].

            A leitura de Kant não é fácil. Seu estilo rebuscado é permeado de terminologias formais. A respeito disso, “Haine fala de um estilo cinzento, seco, tosco, de uma linguagem afetada, cortês, fria.”[8] Para endossar a difícil hermenêutica do estilo kantiano, Will Durant conta-nos que, “quando Kant entregou o manuscrito da Crítica a seu amigo Herz, homem muito versado em especulação, Herz o devolveu lido pela metade, dizendo que temia ficar louco se continuasse.”[9] Não obstante, conforme registra Garcia Morente, “a Crítica da Razão Pura, seu livro capital, o mais estudado, o mais comentado, o mais discutido de toda literatura filosófica de todos os tempos”[10] é o contraponto que estabelece o convite para enfrentar o desafio de tentar compreender o pensamento kantiano. Desse modo, aceitemos auspiciosamente a ponderação de Will Durant: “aproximemo-nos dele por desvios e com cautela, começando a uma distância segura e respeitosa; comecemos em vários pontos sobre a circunferência do assunto, e depois avancemos tateando em direção àquele sutil centro em que o mais difícil dos filósofos guarda seu segredo, o seu tesouro.”[11]
            A vida de Kant é muito mais minuciosa e mais nobre do que os detalhes aqui expostos. À guisa de introdução, esboçamos um quadro biográfico desse personagem imortal do intelectualismo humano.

            Seu epígono, Johann Herder, escreveu sobre ele:
           
            “Eu tive a grande sorte de conhecer um filósofo [...] nenhum desejo por fama poderiam alguma vez tê-lo tirado do caminho reto e claro da verdade [...] Este homem, sobre o qual eu sublinho com a maior gratidão e respeito era Emanuel Kant.”[12]

            Paralelo a isso e com a mesma convicção, Will Durant afirma que “a filosofia [...] deverá ser sempre diferente, daqui por diante, e mais profunda, porque Kant existiu.”[13]

            O suprassumo do pensamento de Kant está no seu encantamento, que Reale, magistralmente, interpreta: “o dever impõe-se a nosso espírito com o mesmo esplendor com que contemplamos nos céus as estrelas. “Há duas coisas que me deslumbram, dizia Kant, ‘as estrelas no exterior, e o imperativo categórico do dever, a “boa vontade”, no plano da consciência’”[14]

            Nas palavras do próprio Kant, literalmente, lemos: “Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e crescentes, quanto mais frequência e aplicação delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim, e a lei moral dentro de mim.”[15]

            Por tudo isso, calha bem a epígrafe que cunhei logo de início: Se Sócrates morreu pela filosofia, Kant viveu para ela. Embora, nunca tenha saído de sua provinciana Königsber, toda Europa visitou seu pensamento e cultivou genuflexamente sua filosofia.

            Seu epitáfio é o de um homem devotado totalmente à moral. Assim gravou-se em sua lápide: “O céu estrelado sobre mim, e a lei moral dentro de mim.”


REFERÊNCIAS

COLLINSON, Diané. 50 grandes filósofos. Trad. Maurício Waldman; Bia Costa 2 ed. São Paulo: Contexto, 2004
DURAN, Will. A história da filosofia. Trad. Luis C. N. Silva. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996. (Col. Os Pensadores)
HELFERICH, Christoph. História da filosofia. Trad. Luis S. Repa; Maria E. Heider; R. Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2006
LEITE,  Flamarion Tavares. 10 lições sobre Kant. Petropolis-RJ: Vozes, 2007


[1] Professor de Filosofia na rede pública do DF. Bacharelando em Direito. Autor de vários artigos nas áreas da Filosofia e do Direito.
[2] Cf. LEITE. Flamarion Tavares. 10 Lições sobre Kant, p. 33, rodapé.
[3] In: HELFERICH, Christoph. História da filosofia, p. 254
[4] Apud DURANT, Will. A história da filosofia, p. 254
[5] 50 Grandes filósofos, p. 155
[6] Op. cit., p. 254
[7]  Cf. Filosofia do direito, p. 656
[8]  Apud HELFERICH, Christoph. Op. cit., p. 241
[9]  Op. cit., p. 246
[10] Fundamentos de filosofia – lições preliminares, p. 220
[11] Op. cit., p. 246
[12] Apud COLLINSON, Diané. Op. cit., p. 161
[13] Op. cit., p. 246
[14] Op. cit., p. 660
[15] Crítica da razão prática, p. 172





Agradeço a colaboração e a oportunidade, de publicar mais um excelente artigo do Professor José Fernandes P. Junior .
Parabéns pelo seu trabalho.
Marise.

sábado, 19 de junho de 2010

Foucault cumprimenta a alma – na matrícula

By Paulo Ghiraldelli
I
Pronto para a morte, Sócrates a saudou dizendo que ela seria sua libertação do corpo. Modificada, essa expressão de Sócrates poderia endossar um platonismo rasteiro, que afirmaria algo como “o corpo é a prisão da alma”. Os cristãos preferiram não falar em prisão. Douraram a pílula dizendo que “o corpo é o templo da alma”. Por sua vez, o nietzschiano Foucault veio na contramão para dizer que “a alma é a prisão do corpo”.
A alma é a prisão do corpo? Como? O que Foucault quis dizer com uma frase dessas, que não deixa de ser esquisita? O que pensar?
O trecho em que Foucault expõe essa idéia está em Disciplina e punição: o nascimento da prisão, e é parte um parágrafo que dá o serviço:
“(…) Mas não vamos errar: não é este o homem real, o objeto do conhecimento, da reflexão filosófica ou da intervenção tecnológica, que foi substituído pela alma, a ilusão dos teólogos, é já ele próprio o efeito de uma subjetivação mais profunda do que ele próprio. Uma “alma” o habita e o traz à existência, a qual é ela própria um fator da dominação que o poder exerce sobre o corpo. A alma é o efeito do instrumento de uma anatomia política; a alma é a prisão do corpo” .
Foucault diz que a alma é produzida. Antes havia o corpo. Mas quando convocaram o corpo para ser indivíduo, eis que o chamaram já como sujeito e, assim, como quem deveria poder dizer “não, não vou” ou “sim, vou”. Quando o corpo começou a esboçar esse comportamento, acreditando no que lhe contaram, ou seja, na existência da liberdade, já o fez por meio da alma – eis que ela, recém nascida, abraçou o corpo e passou a conduzi-lo. Ao ser convocado como livre, o indivíduo respondeu não pelo corpo, a quem foi dirigida a pergunta, e sim pela alma. Mesmo jovem, a xereta se intrometeu na conversa. Mas isso porque a conversa já era mesmo com ela. A conversa era com quem já estava sendo tratado como indivíduo e, então, este deveria mesmo responder pela boca da alma. Seria estranho para quem iniciou a conversa que o corpo começasse a falar. Corpo não fala. A boca mexe, ela é corpo, mas quem fala é a alma. Não é assim que nós dizemos, na civilização?
O caso todo fica claro se notarmos que ao requisitar do corpo que viesse à luz como indivíduo, nesse exato momento, todas as ações do poder já estavam se desenvolvendo de modo a produzir quem iria responder – a alma. Por que digo que “fica claro”? Está claro, eu digo, nos textos de Foucault. Afinal, quem é que requisita a todos nós como indivíduos, ou seja, como sujeitos modernos? São as instituições nas quais adentramos, exatamente para sairmos delas, se sairmos, como indivíduos autênticos. Foucault fala de hospitais, penitenciárias, clínicas e várias outras, mas ele não se esquece de uma das principais, a escola.
II
Quando entramos na escola, muitos dizem que temos alma. Mas não é tão verdade assim. Até temos sim, e Foucault lembra isso no trecho citado ao dizer que quando somos requisitados já ocorreu uma subjetivação profunda, mas no âmbito da escola, ainda somos uma alma fraquinha. Entramos na escola como corpo. Somos levados lá na escola como corpos. Uma vez na escola, caímos nas malhas de algo chamado pedagogia. Suas regras não são diferentes do que nossos corpos criaram. São dizeres de “sim” e de “não” que nossos corpos inventaram. Uma vez tecidas sob o nome de “pedagogia”, ficam mais pomposas e se distribuem pelos sons emitidos pelos professores, pela maneira como a arquitetura da escola nos dispõe e pela legislação inerente aos estatutos dos estabelecimentos. Tudo isso é pedagogia. Ganha nomes particulares como currículo, laboratório, recreio, tarefa, prova, etc.
Na escola, sob a pedagogia, para tudo que nosso corpo quer temos de encontrar justificações. Temos de justificar e, depois, somos cobrados de modo a dizer se a justificação merece um “sim” ou um “não”. O outro lado da moeda liberdade que nos oferecem na escola é a responsabilidade. Quando estamos para sair da escola, percebemos que estamos mais pesados. Nosso corpo se desenvolveu? Sim! Mas o peso é bem maior que aquele dado pelo corpo. Saímos mais pesados porque ali dentro da escola ganhamos um regime para a alma. Ela foi sendo inflada por meio de ditos, não-ditos e desditos. Mas, também, é evidente, pelas punições, castigos e elogios que, enfim, nos deram responsabilidade.  A alma é moldada por isso tudo, mas seu recheio é a culpa.
Nosso corpo sai da escola preso pela alma. Ele sente agora que caminhará eternamente a partir do comando do tecido da alma. Este tecido se enerva a partir da culpa e, nos melhores, a partir do arrependimento. Disseram que era responsabilidade. Mas, sabe-se bem, não há responsabilidade alguma – eis aí uma palavra sem substância. Na hora que olhamos para alma, vemos inúmeras garrinhas de culpa que mordem veias, nervos e órgãos do corpo. A alma não prende o corpo “por fora”. Ela é como um musgo que prende a casa ao se distribuir por todas as suas paredes. E onde há frestas, esse musgo se enfia e tudo preenche. É assim que a alma prende o corpo. Qualquer tentativa de tirar o musgo, e eis que pedaços de carne, ossos e sangue vem junto. O corpo pode morrer se tentamos nos livrar da alma.
Quando o corpo está já plenamente preso pela alma, podemos sair da escola e, enquanto sujeitos (como sujeitos morais – pessoas), podemos nos proclamar indivíduos livres. O processo escolar pelo qual passamos recebe o nome, na terminologia de Foucault estampada em Vigiar e punir e no primeiro volume da História da Sexualidade, de “anátomo política do corpo”. Inicia-se então outro processo, o da “biopolítica da população”. Ambos compõem as práticas de poder que produzem a modernidade. Nasce aí, com a noção foucaultiana de modernidade, o que ele mesmo denomina de “sociedade disciplinar”.
Passamos diante do Estado e ele nos batiza cidadãos. Ganhamos números para respondermos à previdência social, ao emprego, ao fisco, ao trânsito, ao matrimônio e ao túmulo. Nossos esposos, uma vez viúvos, pegam esse número para reivindicar a parte de nossas aposentadorias. Esse número compõe ainda as estatísticas para os cálculos de vida média da nação. Ele medirá o “desenvolvimento” da nação.
O número nos devolve à abstração que a condição de indivíduo parecia nos ter tirado. Só nos tornamos números porque somos corpos presos por identificação clara, dada por nossa alma. Cada alma fala e se identifica. Ao dizer o nome e assumir toda e qualquer culpa que se está distribuindo naquele momento, ganha também um número, volta ao campo abstrato. Dilui-se entre tantos outros números.
Tudo que ocorreu nessa relação entre a alma que prende o corpo enquanto responde pela condição deste de ser indivíduo, se fez por tramas do “pode” e do “não pode”. Ou seja, tramas do poder. Tudo isso são as tais ações e relações do poder.  A essa altura, então, Foucault já está longe da idéia de um poder que se faz pela política em seu sentido tradicional, a política dos partidos e das ações de governo. Foucault vê o poder na governabilidade que se produz em cada um no interior das instituições, entre elas, uma principal porque realmente se ocupa da própria requisição e produção do indivíduo, que é a escola.
III
Volto à “anátomo política do corpo”. Ela começa com a matrícula. Alguém nos pega pela mão e atende a requisição da instituição para que se cumpra um direito que é um dever, a obrigatoriedade da educação. A escola lá está, sedenta por nós.
Quando cada um senta num banco escolar, seu corpo se conforma a um espaço. Ele recebe então a matemática ou qualquer outro conhecimento, mas ninguém conta grandes mentiras ali não, pois cada coisa já vem com o nome real: disciplina. A matéria é o assunto, mas a prática do assunto é a disciplina. Você passa pela grade curricular. Grade! E vai sendo disciplinado por meio da Matemática, Português, Geografia, História e tudo o mais.
A sala de aula é o lugar par excellence dessa disciplinarização. Conformado o corpo ao banco escolar, o corpo responde a chamada. Diz seu nome e já ganha um número. Começa então o ritual que, no seu todo, é o que os educadores irão dizer, ao final, que ocorreu. Ocorreu o exercer da pedagogia. Serva ou não da psicologia, essa pedagogia pode receber inúmeros nomes, pode-se falar que ela é construtivista ou libertadora. Uns a batizam com nomes tais como Vigotsky ou Piaget, outros preferem usar de auto-ajuda ou seja lá o que for que alunos de pós-graduação possam inventar. Mas, antes de tudo, a pedagogia é uma vitamina especial, que cria os ossos do corpo como paredes que devem ficar porosas de modo que o musgo possa se agarrar cada vez mais a elas. O musgo da alma precisa preencher tudo. Em todo cantinho ele precisa colocar aquilo que Nietzsche dizia que faz um homem ser homem: a culpa.
Quando você vai com seu corpinho fazer a matrícula, é para que você saia depois, anos depois, como um bípede-sem-penas que tenha alma. “Você não tem alma?” – perguntarão todos a você. “Você não é humano?” – também perguntarão isso. Todos cobrarão de você que abandone o Grilo Falante e não mais se comportem com bonecos de pau, só com corpo, mas com consciência, ou seja, com alma. Ora, mas você vai agir com alma e pela alma. Ela é o musgo inflado que não pode mais ser tirada do corpo sem que este venha a perecer.

©2010 Paulo Ghiraldelli Jr. filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Mais sobre Foucault aqui: Foucault e a educação – como?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A alegria

Saiba mais sobre o filósofo alemão que construiu uma obra em que a felicidade é um tapa de luva na cara do destino 

 texto José Francisco Botelho design Adriana Wolff e Julia Grassetti


Tragicamente alegre e alegremente pessimista. Humano e rancoroso, generoso e turrão. Todos esses epítetos são aplicáveis ao filósofo alemão Arthur Schopenhauer – cuja obra brilhante e virulenta é um dos maiores tesouros literários da filosofia ocidental. Adorado por artistas, poetas, escritores e pensadores marginais – mas também espinafrado por outros filósofos e muitas vezes ignorado pelas academias –, ele deixou uma obra carregada de humorismo e amargura, piedade e maledicência, pessimismo e esperança.



Considerado por muitos o pai da angústia moderna, Schopenhauer já foi descrito – de forma simplista – como o sumo-sacerdote do niilismo destrutivo. Mas sua dura sabedoria é um vinho doce-amargo, temperado em igual medida pelas dores do mundo e pelas alegrias da arte e do conhecimento. Schopenhauer resumiu essa postura ambígua, que oscila entre o desespero existencial e a esperança possível, numa máxima latina: tristis in hilaritate, hilaris in tristitia. O homem sábio, em outras palavras, deve ser “triste em sua alegria, alegre em sua tristeza”. Para compreender a alegria trágica de Schopenhauer, antes é preciso deslindar sua apaixonada apologia do pessimismo.



Arthur Schopenhauer
O chamado “filósofo do pessimismo” (um exagero, como se vê) nasceu em 1788 em Danzig, na época pertencente à Prússia, e morreu em 1860 na cidade alemã de Frankfurt.



Vontade cega Schopenhauer nasceu em 1788 na cidade livre de Danzig, que hoje faz parte da Polônia. Sua mocidade foi marcada pelo misterioso suicídio do pai (que pulou da janela de casa quando Arthur tinha 18 anos) e pelas pendengas literárias e intelectuais com sua mãe. Famosa na época, Johanna Schopenhauer era uma coquete beletrista de temperamento frívolo. Autora de romances folhetinescos e açucarados, ela sentia verdadeira repulsa pelo gênio sombrio do filho, que, desde tenra idade, já era um tanto obcecado pelos aspectos mais espinhosos da existência. “Quanto mais o conheço, mais difícil para mim é viver perto de você”, escreveu Johanna em 1807. “Sua eterna mania de cismar sobre a estupidez do mundo e a miséria humana enchem minhas noites de pesadelos.” E foi cismando teimosamente sobre as misérias do mundo que Schopenhauer escreveu, aos 30 anos, sua obra-prima: O Mundo como Vontade e Representação, publicado em 1818.



Espécie de bíblia do pessimismo, a obra colocou-o em rota de colisão com sua própria época e o transformou no filósofo maldito por excelência – um de seus admiradores, Friedrich Nietszche, mais tarde o apelidou de “cavaleiro solitário” da filosofia. O início do século 19 foi dominado pelas teorias otimistas de Friedrich Hegel, que considerava a Razão como o fundamento da existência. A História era vista como uma espécie de via ascendente: apesar de seus percalços, ela eventualmente conduziria a humanidade a um futuro de felicidade plena. Foi contra essa fortaleza de otimismo fácil que o jovem Schopenhauer dirigiu seus petardos agudos e contundentes. Para ele, a base do cosmo não é a Razão humana ou divina, mas uma força irracional e sem propósito: a Vontade, “mero ímpeto cego” que move todos os seres a uma existência fútil, sem sentido e essencialmente dolorosa. Em sua fome por existência, a Vontade gera, paradoxalmente, a destruição de suas próprias criaturas: por isso, somos seres feitos de desejos insaciáveis, em constante autoconflito. Em suma: “Toda vida é sofrimento”.



Para Schopenhauer, a História da humanidade não era um dos novelões faceiros e benevolentes que sua mãe publicava com grande sucesso (e que o jovem caturra detestava com todas as forças). Antes mesmo que o marxismo seduzisse os intelectuais europeus com promessas de um beatífico futuro de igualdade, Schopenhauer já chegara à conclusão de que todas as utopias – religiosas ou seculares – são contos da carochinha potencialmente perigosos. “Imaginemos, por um instante, que a humanidade fosse transportada a um país utópico, onde os pombos voem já assados, onde todo o alimento cresça do solo espontaneamente, onde cada homem encontre sua amada ideal e a conquiste sem qualquer dificuldade”, ele escreveu em um de seus ensaios, com típico humor negro. “Ora, nesse país, muitos homens morreriam de tédio ou se enforcariam nos galhos das árvores, enquanto outros se dedicariam a lutar entre si, a se estrangular, a se assassinar uns aos outros.” Se para alguns a existência humana é um melodrama com final feliz, para Schopenhauer ela é uma tragédia grega.



Tragédia alegre Mas recordemos: segundo Aristóteles, a tragédia é aquele gênero que provoca terror e piedade em sua audiência, para em seguida levar à purificação dessas emoções. Em meio aos tormentos de um universo trágico, há sempre a promessa da catarse – o êxtase no meio do horror. Fiel a suas fontes clássicas, o messias do pessimismo elaborou uma filosofia desiludida, sim, mas também dotada de uma aura de consolo. Criticando o pessimismo exacerbado e egocêntrico dos suicidas, o filósofo nos recomenda uma bravura estoica frente aos tormentos da existência. “Não cedas à adversidade, mas marcha audaz contra ela”, ele nos convoca solenemente. De certa forma, o adorável rabugento sugere que devemos rir – ou, pelo menos, sorrir – ainda que estejamos no meio do inferno. Aqui, a felicidade plena é impossível – mas o mesmo não vale para a alegria, exceção heroica e sempre desejável à sofrida regra da existência, e espécie de tapa de luva na cara do destino.



Hilaris in tristitia: conselho útil para uma época como a nossa, já saturada de horrores passados e à espera de minuciosos horrores futuros (que vão desde a metamorfose da Terra em uma panela de pressão superaquecida, povoada por seres famintos, até a possibilidade sempre presente de alguma estúpida hecatombe nuclear). Época que – com a exceção de alguns desatentos... – já perdeu suas ilusões em utopias sociais ou econômicas. O que fazer, quando nenhum paraíso parece convincente? A resposta talvez esteja no cálice de sabedoria amarga que Schopenhauer nos estende, com um piscar de olho zombeteiro. Perante um mundo desgovernado, o sábio deve adotar uma postura consciente das agruras da existência, mas atenta a cada possibilidade de alegria e pautada pela ética, fruto da compaixão universal – sentimento quase milagroso que permite ao indivíduo transcender sua própria dor e identificar-se com a dos outros. Sem esperanças de redenção absoluta, o homem sábio deve viver no presente, alegrando-se com as eventuais belezas da vida e suportando suas inevitáveis desgraças. Escreve Schopenhauer em seus Aforismos Para a Sabedoria de Vida. “Só o presente é verdadeiro e real... Por conseguinte, deveríamos dar-lhe uma acolhida jovial e fruir com consciência cada hora suportável e livre de contrariedades ou dores, em vez de turvá-la com expressões carrancudas acerca de esperanças malogradas... Quanto ao futuro, devemos pensar: isso repousa no colo dos deuses”.



Além da prudência estoica, há outra nota de esperança na obra de Schopenhauer: a salvação pela arte e pelo conhecimento. Em tempos de tecnocracia e utilitarismo, em que as artes são constantemente enquadradas como ferramentas de marketing ou veículos para esta ou aquela ideologia política, vale a pena retomar as ideias desse amante sincero da poesia e da música (não por acaso, Schopenhauer é um dos filósofos favoritos de escritores e artistas desde o século 19). A arte, para o pensador, é a porta do êxtase – o caminho que nos liberta temporariamente da Vontade cega e nos permite ver o sofrimento humano com o olho neutro da estética. É um repertório de sentidos possíveis em um universo de absurdos. “Ainda que não houvesse mundo”, ele escreveu, “poderia haver música.” Mas a contemplação do belo, para ser transcendente, deve ser desinteressada. Em outras palavras: deveríamos ler poesias, apreciar pinturas e escutar sinfonias não por obrigação curricular ou vaidade intelectual – como tantos fazem hoje em dia –, mas pela busca do deleite que nos cabe, em um mundo já suficientemente cheio de tédio e de misérias. Uma relação menos neurótica e mais erótica com a cultura é um dos bálsamos receitados por Schopenhauer para as feridas incuráveis da existência.



Gênio solitário Outra lição deixada por Schopenhauer foi sua própria vida – uma eloquente ilustração de que a teimosia compensa e de que o inconformismo é uma boa luta. Arauto do pensamento individual, Schopenhauer foi um filósofo sem papas na língua, e pagou um preço alto por isso. Na época de sua publicação, O Mundo como Vontade e Representação vendeu menos de 100 exemplares – e a carreira universitária de seu autor jamais decolou. Em 1820, ele conseguiu uma cátedra na Universidade de Berlim e, por pura implicância, suas aulas eram nos mesmos horários ocupados pelas conferências de Hegel, seu arqui-inimigo intelectual. Em vez de um duelo de titãs, o que se seguiu foi um dos grandes fiascos na história da filosofia: enquanto as preleções otimistas de Hegel lotaram salas, as aulas de Schopenhauer atraíam menos de dez alunos.



Schopenhauer sugere que devemos rir ainda que estejamos em um período difícil. Pois a alegria é uma exceção heroica e sempre desejável em nossa existência



Nos anos seguintes, Schopenhauer se tornou um inimigo declarado do mundo universitário. Em páginas deliciosamente azedas, o cavaleiro solitário fustigou os eruditos profissionais – em sua opinião, pensadores “assalariados” que passam a vida citando opiniões alheias, sem jamais desenvolver um pensamento próprio. “A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelos alheios, porque carecem de cabelos próprios”, escreveu ele, com característica falta de condescendência, em Sobre a Erudição e os Eruditos. Vale esclarecer: o que Schopenhauer criticava não era a erudição em si mesma, mas o monopólio conhecimento conhecimento por patotas acadêmicas. O que esse gênio mal-humorado valorizava acima de tudo era aquela figura rara, quase milagrosa, que ele próprio encarnou à perfeição: o pensador independente.



Independente e solitário, Schopenhauer passou os últimos anos de sua vida em Frankfurt, morando com seu cachorro de estimação, o poodle “Atma” – “alma do mundo” em sânscrito –, cuja companhia achava preferível à da maioria dos seres humanos. Apesar da indiferença do público, ele continuou estudando e escrevendo com furor e gana (graças a um gordo estipêndio familiar, nunca precisou trabalhar para viver...). E o sucesso finalmente veio em 1851, com a publicação de Parerga e Paralipomena, uma coletânea de ensaios sobre temas variados como as mulheres, o suicídio e a poluição sonora (traço da vida moderna que, já naquela época, o filósofo achava insuportável). O estilo ameno e epigramático dessas reflexões granjeou-lhe uma fama tardia, mas duradoura. Nas décadas seguintes, enquanto a filosofia hegeliana entrava em declínio, a obra completa de Schopenhauer seria redescoberta por consecutivas gerações de artistas e desajustados. As ideias agridoces desse misantropo desgrenhado, alérgico à estupidez alheia, mas dotado de infinita compaixão pelas dores universais, entrariam definitivamente nas veias do Ocidente. Os ecos de sua obra se estendem de Nietszche a Freud e Wittgenstein, e isso sem falar na influência colossal que exerceu sobre gente do calibre de Richard Wagner, Proust, Joseph Conrad e Borges. Este último, certa vez, disse o seguinte sobre seu filósofo favorito: “Creio que ele nos deu, de algum modo, a chave para decifrar o mundo”.



O teimoso cavaleiro andante da filosofia tinha plena consciência de que, após tantas derrotas, ele finalmente venceria a peleja contra seu próprio tempo. Pouco antes de morrer, alguém lhe perguntou onde gostaria de ser enterrado. O hábil frasista retrucou: “Em qualquer lugar. A posteridade me encontrará”. 

Fonte: Revista Vida Simples - Edição 90 - 03/2010.
imagem em: sol.sapo.pt/.../archive/2010/05/29/1699649.aspx

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