domingo, 28 de fevereiro de 2010

O Sócrates louco


Diógenes e Alexandre, o grande.


Por José Fernandes P. Júnior[1]
        
A princípio denominei o título desse singelo fragmento de “Diógenes, o zombador social”. E na verdade calhava bem esse título. Adiante veremos isso, pois o que se segue é um resgate do anedotário e lendas que a história da Filosofia fez questão de gravar em seus arquivos, a fim de que os pósteros de Diógenes não olvidassem o seu nome. Entretanto, a ironia platônica ao filósofo, justificou tal mudança: um dia quando perguntaram a Platão o que ele achava de Diógenes, a resposta foi: “um Sócrates louco.”[2] Veremos por quê.

            Diógenes de Sinope, o cínico (c.400 – c.325 a.C.), viveu uma vida de total desdém às convenções sociais de seu tempo. Algumas peculiaridades de sua vida são descritas por seu homônimo Diógenes Laércio em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Este nos conta de Diógenes que seu traje era uma túnica, um alforje e um bastão. Era extremamente pobre e dependente das esmolas e benemerência de seus compatriotas. “Em certa ocasião – diz-nos Laércio – Diógenes escreveu a alguém pedindo-lhe para arranjar uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa ele passou a morar num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas.”[3]

Conta, ainda, Teôfrastos no seu Megárico que “certa vez Diógenes, vendo um rato correr de um lado para o outro, sem destino, sem procurar um lugar para dormir, sem medo das trevas e não querendo nada do que se considera desejável, descobriu um remédio para suas dificuldades.”[4]

Sem dúvida, Diógenes era um homem de se admirar por suas tiradas e estilo de vida. Não obstante, o povo de Atenas o amava. “Tanto era assim que quando um rapaz lhe quebrou o tonel os atenienses surraram o rapaz e deram outro tonel a Diógenes.”[5] Com efeito, o próprio filósofo “dizia que todas as maldições da tragédia haviam caído sobre ele e de qualquer modo era um homem ‘sem cidade, sem lar, banido da pátria, mendigo, errante, na busca diuturna de um pedaço de pão.”[6]

            Ademais, Laércio diz que o cínico Diógenes “no verão rolava sobre a areia quente, enquanto no inverno abraçava as estátuas cobertas de neve querendo por todos os meios acostumar-se às dificuldades.”[7] Em meio a um estilo de vida que parecerá ao homem moderno uma desgraça, foi Diógenes um homem livre e admirado no seu tempo.

            Em suma, viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e dinheiro, portanto pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem justo no mundo”.

Sabe-se que quando Alexandre, o grande, ao se encontrar[8] com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou Alexandre, o grande. Pede-me, agora, o que queres”. Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”. Por fim murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”.

            Outras curiosidades[9] sobre Diógenes:

            - Quando foi capturado e posto à venda como escravo perguntaram-lhe o que sabia fazer, “Comandar homens”, disse ele, e deu ordens ao leiloeiro para chamá-lo no caso de alguém querer comprar um senhor.

            - Certa vez Diógenes gritou: “Atenção homens!”, e quando muita gente acorreu, ele brandiu o seu bastão dizendo: “Chamei homens, e não canalhas!”
           
- Platão definira o homem como um animal bípede, sem asas, e recebeu aplausos; Diógenes depenou um galo e o levou ao local das aulas, exclamando: “Eis o homem de Platão!”

            - A alguém que lhe perguntou a que horas devia almoçar, sua resposta foi: “Se fores rico, quando quiseres; se fores pobre, quando puderes.”

            - A alguns jovens que o cercavam e diziam: “Cuidado para que não nos morda!”, ele falou: “Um cão não come acelga.”

            - A certa pessoa que considerava Calistenes feliz porque desfrutava do esplendor do séquito de Alexandre, o Grande, ele ponderou: “Calistenes é sem dúvida infeliz, pois almoça e janta quando Alexandre tem vontade.”

            - Em certa ocasião, quando se masturbava em plena praça do mercado, disse: “Seria bom se, esfregando também o estômago, a fome passasse!”

            - Quando alguém o reprovou por seu exílio sua resposta foi: “Mas me dediquei à filosofia por causa disso, infeliz!”

            - Em certa ocasião pediu uma esmola a uma estátua; a alguém que lhe perguntou a razão do pedido o filósofo explicou: “Para habituar-me a pedir em vão.”
            - A alguém que lhe disse: “Muita gente ri de ti”, sua resposta foi: “Mas eu não rio de mim mesmo.”

            Outras narrativas há sobre as tiradas e ditos do cínico Diógenes. Qualquer semelhança entre Sócrates louco e Diógenes é mera coincidência. Será?

           
BIBLIOGRAFIA
LAÊRTIOS, Diógenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 2008



[1] Professor de Filosofia na rede pública do DF. Bacharelando em Direito. Autor de vários artigos nas áreas da Filosofia e do Direito.

[2] Cf. Diogenes Laércio. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 165
[3] Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 158
[4] Apud. LAÉRCIO, Diógenes. Op cit. loc.cit.
[5] LAÉRCIO, Diógenes. Ibidem, p. 163
[6] Idem, ibidem, p. 161
[7] Idem, p. 158
[8] Diógenes Laércio dá detalhes desse encontro e, ainda, conta-nos: “Em certa ocasião Alexandre, o Grande, ficou à sua frente e perguntou-lhe: “Não me temes?” Sua resposta foi: “Que és tu ? Um bem ou um mal?” Alexandre respondeu: “Um bem.” Então Diógenes concluiu: “E quem teme um bem?”
[9] Cf. Diogenes Laércio. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres.

Imagem http://harrynasaladejustica.blogspot.com/2009/11/diogenes-e-como-acabar-com-fome.html

***Agradeço pela oportunidade de  publicar mais um excelente texto, de autoria do Professor e Filósofo José Fernandes P. Júnior.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

O ser, o tempo e a técnica, por Régis de Oliveira Montenegro barbosa *


Cônscios das facilidades propiciadas pelo avanço tecnológico da sociedade moderna, mas não sem pagar alto preço, assistimos à degradação da humanidade na seara ética. É como na história do sapo que posto no interior de uma panela imerso em água, cujo calor é paulatinamente elevado, nela permanece até que venha a fenecer por não se dar conta do gradual aumento da temperatura. Seduzidos pela técnica, fustigados pela azáfama cotidiana e sob o encantamento produzido pela máquina, estamos embevecidos, com olhos fixos no visor do celular, do computador, do televisor etc. Perdemos, todavia, o que está no entorno, o mistério e a magia da vida.

Portadores de uma consciência que se esgota no grupo, reféns do inconsciente coletivo junguiano, deixamos de atingir uma consciência individualizada. Cultiva-se o que é saliente e visto, não o que está oculto, em afronta ao aforismo de Antoine de Saint-Exupéry de que “o essencial é invisível aos olhos”. Cada vez menos vicejam a poesia, a sensibilidade, o encantamento. Tais posturas anímicas não raro são acoimadas de parvoíce e pusilanimidade. Parece que nem somos suscetíveis a fragilidades naturais como as que são ínsitas à condição humana.

A cultura do livro cedeu espaço à indústria cultural, o que caracteriza a atual sociedade do espetáculo. Adotamos postura estereotipada, forjada pela cultura de massa, a retratar uma mentalidade de rebanho. Frutos de uma sociedade midiática que forja ídolos que se sustentam porque existem idólatras que, com tal atitude, se desconectam de sua força e sabedoria interiores. Vivenciamos uma “sociedade em rede”, sob exortação de nela permanecermos plugados. Instala-se, então, um mundo virtual, artificial, à margem do mundo concreto e natural, a ponto de aquele assumir maior significância.

Tido por um dos críticos da sociedade da técnica, para o filósofo alemão Martin Heidegger esta desviou o homem da indagação pelo sentido do ser, pelo significado mais profundo da existência humana.

Outro efeito colateral é a sensação de aceleração do tempo. Somos “levados de roldão” por uma engrenagem movida pelo combustível do capital, com potencial de desembocar no autofagismo, a ponto de nos tornarmos timoratos de que venha a se cumprir o vaticínio maia de que ocorrerão catástrofes naturais já no vizinho ano de 2012, aptas a provocarem o ocaso da existência humana nas condições conhecidas.

Pena que para comer a polpa da fruta tenhamos que engolir o caroço!


*Juiz de Direito, graduando em Filosofia

Fonte: Jornal Zero Hora
Imagem em: tudoecomentado.blogspot.com/2009_11_01_archiv.. 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Filosofia: uma busca primordial, por José Igídio dos Santos


     Quantos de nós já nos inquietamos com a questão: Por que estudar filosofia?! Buscar uma resposta satisfatória a esta indagação é um desafio para a uma sociedade imediatista e consumista como a nossa, pois existe um descaso pelo pensar filosófico, mas via de regra a filosofia serve-se aos mais conscientes para encarar a realidade com inquietude e insatisfação, face aos desvios éticos, políticos, culturais a que estamos submetidos. No contexto hodierno é temerário atuar no mundo da sabedoria, questionando proposituras e posturas que expulsem o imediatismo e instaure a civilidade e a capacidade de conviver entre os saberes que questiona “o saber instituído”.

     O filósofo conforme já anunciava Pitágoras não é um “atleta intelectual”, o seu compromisso é com o desenvolvimento do pensamento reflexivo em vista dos diversos contextos para nos ajudar a compreender os múltiplos aspectos da realidade da vida humana, social, política, econômica, cultural, icônica, tecnológica, antropológica, só para citar alguns nichos...

     Ser filósofo profissional na atual sociedade não serve para quem deseja ganhar altos salários, embora fosse um mérito, se acontecesse. Na verdade, todos os educadores que se dedicam ao ensino são pouco valorizados e respeitados, o que não ocorre entre os políticos e diversos profissionais liberais que são muito bem remunerados, mas nenhum deles conseguiu seu espaço sem o auxílio pedagógico de educadores.

    As instituições Particulares e algumas Estaduais no Ensino Médio imperam uma metodologia bancária focada no vestibular e não nas habilidades e competências que possibilitem aos educandos enfrentar as (in)certezas do momento presente. Com raras exceções, desde muito tempo a maioria das famílias vem “desistindo dos filhos”, pois ao matriculá-los numa escola pública ou particular “muitas vezes” se esquecem de educá-lo para os princípios fundamentais da convivência humana e isto é detectado no dia-a-dia escolar, vemos a incapacidade dos alunos de dialogar com respeito a si e aos outros, intolerância ao silêncio, inquietude eletrônica, uso do celular para torpedos dentro da sala de aula e ainda audição de músicas. Este procedimento coloca em xeque a prática pedagógica do educador que procura usar novas metodologias capazes de ajudar à formação humana, moral e cidadã do educando.

     Por estes fatos constatamos a falência da educação de base, muitos pais desistiram de seus filhos e os entregaram às instituições escolares se eximindo da cotidianidade, do acompanhamento formativo de princípios e valores. Realmente o que existe na sociedade brasileira é ainda uma educação que reforça as desigualdades sociais, classificando e excluindo. Existem muitas mudanças em processo na área educacional, mas não é possível vermos resultados imediatos, pois o professor vive parte de sua vida em ambiente de trabalho estressante, competitivo e muitas vezes a sua função primordial é desviada para os cuidados aos princípios educacionais que os pais ou responsáveis deixam de cumprir pela incapacidade de impor limites aos seus rebentos e educá-los para os princípios básicos da convivência entre os humanos: respeito, compreensão, polidez, doação, partilha.

     Para que haja uma nova perspectiva no Ensino Brasileiro há que se investir mais em Ensino Público de qualidade para todas as classes sociais dando o espaço adquirido por meio de lutas históricas para disciplinas humanistas como Filosofia, Sociologia e Psicologia. Nosso questionamento é o seguinte: Por que a Secretaria da Educação de São Paulo não cumpriu a Resolução de Nº. 04 de 16 de Agosto de 2006 do CNE, que tornaram os conteúdos de Filosofia e Sociologia obrigatórios em 2007 e que neste ano 2008 foram excluídos das 3ªs. séries do Ensino Médio da Rede Estadual? O que nós profissionais da educação formados em Filosofia e Sociologia não gostaríamos que acontecesse é a rendição do Governo as exigências de muitos colégios particulares que não querem contratar os profissionais que há mais de 40 anos estão excluídos do mercado de trabalho.

     Infelizmente existe uma acomodação intelectual e deixamos de pensar de forma múltipla o contexto vital de nossa existência e é justamente aqui neste âmbito que se faz necessária a emergência do filosofar, pois a vida humana pede socorro e nós estamos insensíveis ao eco da vida que emana das diversas faces da realidade. Como sabemos pela história: é filosofia a mãe de todas as ciências e percebemos que muitas ciências parecem prescindirem da filosofia e por conta desta postura instaurar novas ditaduras no conhecimento, supervalorizando mais exatas e biológicas à letras, pensamento sistemático e raciocínio filosófico. Na vida real é assim: toda mãe aguarda a volta do rebento de seu ventre e para isso dá lugar à sua sapiência em busca de uma nova relação de amor pela sabedoria questionadora do real. Este processo poderá ampliar a capacidade do sujeito cognoscente que busca o desenvolvimento do espírito crítico em face da realidade superando a forma pacata de aceitação do real, buscando assim o exercício da autonomia por meio da consciência de que muitas situações reais poderiam ser diferentes se não houvesse conivência humana e que poderíamos ter agido de forma diversa da costumeira.

     Vamos instaurar a realidade do pensamento filosófico como caminho para a sabedoria, para isso deixemos os filósofos e sociólogos trabalharem na mensuração da realidade, todas as disciplinas ganharão mais eficácia na realidade concreta e principalmente no aspecto humano e social.

José Igídio dos Santos,
Licenciado em Filosofia,
Bacharel em Teologia, Professor Universitário na FAECA de
Monte Aprazível e no Ensino Médio na Rede Estadual.
Endereço eletrônico: jigidio@itelefonica.com.br

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Pensantes mentes brilhantes


“O fatalismo não engessa as pessoas. Cada um de nós é responsável e resultado das suas escolhas. Mas as escolhas que valem não são as de ontem. São aquelas que fazemos hoje. A cada dia escolhemos o que queremos ser. Quase sempre, por comodismo, escolhemos continuar do jeito que somos”. (Frei Aldo Colombo)

Pensar é uma atitude a ser provocada, sobretudo aos mais jovens. Somos herdeiros de uma grande conquista que é a liberdade de expressão, mas esta deve ser ampliada por um pensar denso, crítico e capaz de construir novas referências para a vida, a cidadania e a democracia no mundo. Tarefa de quem? Dos professores e mestres, que tem por objetivo em seu trabalho o desenvolvimento de mentes humanas.

O ambiente escolar é, por excelência, um lugar que nos permite instigar os adolescentes e jovens a descobrirem-se seres pensantes. E esta descoberta ou re-descoberta, feita por eles, é contagiante e desencadeadora de processos que determinam a sua condição de sujeitos. Sim, porque descobrem: “eu posso e devo pensar”. Pensar me dá a condição de ser alguém, porque quando penso tenho algo a dizer aos outros. Desejo comunicar aquilo que sou e aquilo que penso e então digo: “me ouçam”, “eu estou aí”. “Sou protagonista; detesto ser pensado pelos outros”.

O conhecimento, em permanente construção, requer da gente atitudes de aprendentes. Conhecer não é saber tudo, mas é colocar-se aberto às possibilidades de aprendizagem que a vida e o mundo nos oferece. A verdade é uma constante busca, não uma posse de um ou de outro. Todos somos capazes de apreender e conhecer a verdade, mas muitos preferem viver a mediocridade. Como disse Frederick Crane, "a mediocridade refugia-se na padronização”. É que todo conhecimento aprendido gera compromissos e responsabilidades. E depois de saber, não posso argumentar que não sabia, não posso dizer que determinadas informações me eram desconhecidas. Sabendo, convivo com as responsabilidades do saber que adquiri.

Quanto mais conheço sobre mim mesmo, sobre a vida e sobre a realidade, maiores as condições de reconhecer-me como um sujeito. Como um ser de projeto, estou em permanente construção. Minhas escolhas contribuem para determinar quem eu sou, por isso devo estar atento para que estas estejam em sintonia com aquilo que defini ser o meu projeto de vida. Ou, talvez, as escolhas que eu venha fazendo possam estar indicando aquilo que desejo para mim. Sim, porque nunca é bom ser sem rumo.

O isolamento social, por sua vez, traz sérias conseqüências para a construção do saber. O conhecimento é enriquecido nas trocas e no encontro com os outros. O encontro com os outros é a possibilidade do encontro de distintos saberes. É no diálogo que enriquecemos os nossos conhecimentos. É no cara-a-cara, no face-a-face que melhor confrontamos as diferentes interpretações sobre a vida e sobre os fatos. Nada substitui os relacionamentos interpessoais, sempre carregados de sentidos e dimensões fundamentais para a compreensão da vida e da realidade.

Todos nascemos potencialmente capazes de pensar e brilhar. Por conta de nossas idéias, nos fazemos sujeitos de nossa história. Como diz o poeta russo Aleksander Puchkin, “... escolhe um caminho livre. E segue por onde levar tua mente livre; aperfeiçoa os frutos das idéias que te são caras, sem nada esperar por teus nobres feitos. Em ti estão todas as recompensas. De ti és o juiz supremo. Ninguém, com mais rigor, julgará tua obra. Judicioso artista, isto te apraz?”.


Nei Alberto Pies,
professor e militante de direitos humanos.
Endereço eletrônico: pies.neialberto@gmail.com

sábado, 13 de fevereiro de 2010

CONSOLAÇÕES DA FILOSOFIA ou Migalhas filosóficas para libertação




Por José Fernandes P. Júnior[1]

                        Se este mundo fosse isento de miséria e de dor, tornar-se-iam [os homens] a presa                                        do tédio, e na medida que pudessem fugir a este mal, recairiam nas misérias, nos tormentos, nos sofrimentos.
Shopenhauer, Dores do mundo [2]

            Tomo aqui emprestado os títulos das Obras “De consolatione philosophia” de Severino Boécio e Migalhas Filosóficas de S. Kierkegaard para denominar este singelo fragmento que ora me proponho a escrever. Poderão alguns pensar que se trata de mais uma peça de auto-ajuda ou são pílulas para anestesiar a dor do homem jogado e perdido no abismo do vazio do mundo. Não é este o caso. Queremos, tão-somente, apreciar algumas das belas passagens e exemplos que a Filosofia nos dá como consolação para o homem melancólico dos tempos hodiernos, preocupado mais com suas vantagens e o instante de sua satisfação pessoal.

            Comecemos, então, por um fato ocorrido com o filósofo Zenão de Cicio (334-264 aC.). Narra-nos Diógenes Laécio em Vida, Doutrinas e Sentenças dos Filósofos Ilustres que,  quando foi a Zenão anunciado o naufrágio no qual tudo que possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “a fortuna quer que eu filosofe sem nenhum embaraço”. A história da Filosofia dá-nos conta que Zenão depois do incidente e agora pobre, fundou o Estoicismo (gr.: Stoa), corrente filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine).  De igual modo, consola-te, pois, com o que não pode ser mudado, nem modificado.

            Outro personagem que nos traz uma consolação é Diógenes de Sinope (413-323 a.C.), o Cínico; este viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e  dinheiro, portanto pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem justo no mundo”. Sabe-se que quando Alexandre, o grande, ao se encontrar com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou Alexandre, o grande. Pede-me, agora, o que queres”.  Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”. Por fim murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. Assim – qual Diógenes – consola-te, pois, com o teu sol.

            Pode o leitor, precipitadamente, depois de ter lido até aqui, formular a conclusão de que queremos induzi-lo a apegar-se a um modus vivendi asceta ou estóico. Não é este o fim que nos move. Seria de nossa parte impossível esta pretensão. Esta impossibilidade é confirmada, com efeito, nos indícios do mundo em que vivemos, cada vez mais utilitarista e, conseqüentemente,  consumista.

            Em vista disso, acertadamente, Aldous Huxley, bem traduziu – já em sua época – esta indisposição do homem para com valores perenes ao perceber sua preocupação apenas com o imediato, por isso bem descreveu as aspirações deste homem moderno: “Dê-me televisão e hambúrguer e não me venha com sermões sobre liberdade e responsabilidade”[3]. Dessa maneira, Huxley sintetiza e anuncia como seria o admirável mundo novo, no qual o homem é vítima de seus próprios desejos. Diante disso, consola-te, pois, com os valores imateriais e perenes.
            A busca incontrolável pela diversão a qualquer preço, isto é, pelos prazeres sensuais, encaminham o ser humano a viver esteticamente, como um arquétipo de Don Juan desses novos tempos.

            Assim, nesse viver mergulhado apenas nas questões que lhe oferecem prazer, o homem vive, conforme Kieerkegaard, o instante. Vale, tão-somente, o estágio estético da existência, que o move incessantemente na busca do prazer pelo prazer. Depois, quando tudo se esvai e, portanto, acaba, ei-lo então depressivo, melancólico e vazio. Surge aí o desespero,  pois o instante é fugaz e quando se vai deixa apenas um buraco e estrago no ser do homem. “Deserto e vazio. Deserto e vazio. E as trevas à beira do abismo”[4]; assim, com palavras do poeta T. S. Eliot, assinalamos este momento. Consola-te, pois, com aquilo que não te consuma e nem leve ao desespero.
           
            Continuemos. Com Sócrates – o filósofo das ruas – surge a recomendação para o ato de refletir, isto é, filosofar. Diz ele: “uma vida sem reflexão não merece ser vivida”. Da mesma maneira, Sêneca (4 a.C.? – 65 d. C.) endossa a importância do ato reflexivo: “Vou dizer-te, então, o que me reconfortou; mas antes quero dizer-te que essas coisas em que encontro alento tiveram para mim a eficácia de um remédio; os bons auxílios transformaram-se em remédios, e qualquer coisa que eleve a alma aproveita também ao corpo. Os estudos foram minha salvação, devo agradecer à filosofia se consegui me levantar da cama, se me curei: a ela devo a vida, mesmo que essa seja a menor dívida que tenho com ela”[5].  Qual Sêneca e Sócrates, consola-te,  pois, com o pensar e o refletir sobre as coisas.

            Bem verdade é que o ser humano, consumido pela velocidade da vida e o progresso desenfreado, não tem tempo para refletir sobre a vida, isto é, pensar filosoficamente. Virou ele prisioneiro da própria teia que teceu, assim como o personagem principal de 1984, de George Orwell, o homem contemporâneo (ou pós-moderno) está sendo (ou foi) reduzido “a uma mera larva de homem, que vive uma vida
desprovida de qualquer sentido”[6]. Sua existência limita-se à busca pelo sucesso e a vencer o outro. Se isto é verdade, devemos compará-lo a Sísifo, “condenado pelos deuses a carregar, nos Infernos, uma rocha para o alto de uma montanha, sem que esse trabalho jamais termine, porque, ao chegar ao topo, a rocha cai de suas mãos e volta a cair no vale”[7]. Como o personagem de Camus, o homem parece condenado a realizar um trabalho infernal, onde a busca pelo topo e primeiro lugar do pódio tiram-lhe a liberdade e a felicidade. Consola-te, pois, em ser feliz e livre, mesmo que não tenha chegado ao cume do sucesso.

            Mas e a felicidade? Ah, a felicidade! Todos querem tê-la como fiel companheira. Mas isso não é possível. A condição humana indica que ser feliz é algo que depende de como estamos e sentimos em determinado momento. Assim, se somos, por exemplo, pegos de surpresa com a notícia da morte de alguém que amamos, mesmo vivenciando um grande momento de alegria, tudo muda. E ainda, se não somos capazes de nos contentar com o que possuímos, somos infelizes por não possuir o desejado, e isso pode gerar até um sentimento de inveja. A respeito disso, vejamos como Madame du Chatelet tratou desse problema: “Um dos grandes segredos da felicidade consiste em moderar nossos desejos e amar as coisas que possuímos. [...] só somos felizes com desejos satisfeitos; portanto, só devemos permitir-nos desejar as coisas que pudermos obter sem excesso de cuidados e trabalhos, e este é um ponto sobre o qual muito podemos para nossa felicidade. Amar o que possuímos, saber desfrutá-lo, saborear as vantagens de nossa situação, não deter demasiado os olhos naqueles que nos parecem mais felizes [...] é a isso que devemos chamar de felicidade [...] Para desfrutá-la, é preciso curar ou prevenir uma doença de outro tipo, que se opõe totalmente a ela e que é muito comum: a inquietação”[8]. Assim, consola-te, pois, a manter o espírito sereno, livre das inquietações e perturbações da coisa desejada.

            Contentar-se com aquilo que está dentro de nossas possibilidades – eis o segredo do ser feliz. Entretanto o que se vê, nesses tempos de corrida incessante contra a morte, é a criação de uma felicidade superficial, forjada nas academias, nas vitrines dos shopping centers, nas cirurgias plásticas etc. A velhice é um fantasma de que todos têm medo. Por isso, ninguém mais quer envelhecer, pois isso significa marcar encontro com a morte. Assim, a busca ilimitada pelo bem-estar material aflige o homem de hoje.

            A felicidade artificial, portanto, substitui dia após dia a felicidade espiritual. E por que isso aconteceu? Segundo Giovanni Reale, isso “aconteceu porque a abundância dos bens materiais, em vez de preencher o homem, o esvaziou. Minou e, portanto, comprometeu sua consistência e densidade moral.”[9]

            Nesse sentido Platão, em Apologia de Sócrates, registra a receita de felicidade prescrita por seu mestre: “Estou tentando apenas convencer-vos, aos mais jovens e mais velhos, de que não deveis preocupar-vos com os corpos, com as riquezas ou com alguma outra coisa antes de vos preocupardes primeiramente com a alma, de forma que se torne o melhor possível,  afirmando que a virtude não nasce das riquezas, mas da própria virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto privados como públicos”[10]. As palavras do filósofo não estão insinuando que devamos ser descuidados com o nosso corpo, o teor delas tem conotação de que a matéria não deve prevalecer sobre o espírito.

            Por fim, resta-nos ainda falar sobre como devemos nos consolar diante do inevitável – a morte. Imagine se fôssemos imortais; alguns iriam dizer que essa vida seria um tédio, outros iriam se achar deuses, outros tentariam inventar o suicídio etc. O certo é que iremos todos morrer: amanhã, ou depois de amanhã, ou quem sabe hoje. A respeito disso, é digno de registro este célebre fragmento de Schopenhauer: “[...] somos escravos do querer viver, que torna em nós a aparência ilusória de uma vontade
individual. Lutamos selvagemente uns contra os outros para conquistar riquezas e honras que a morte logo nos arrancará. Somos escravos do desejo, deste desejo que é sempre sofrimento – sofrimento da necessidade enquanto não satisfeita, sofrimento do tédio quando podemos obter tudo o que desejamos. ‘A vida oscila, como um pêndulo, do sofrimento ao tédio’. Por outro lado a necessidade, a necessidade não cessa de renascer das cinzas e ‘a satisfação que o mundo pode dar aos nossos desejos assemelha-se à esmola hoje dada ao mendigo e que o faz viver o bastante para estar faminto amanhã”.

            Também, conhecedores da finitude humana, os imperadores romanos colocavam escravos nas bigas dos generais que triunfavam nas batalhas para recitarem a seguinte frase: memento mortale est – lembra-te que és mortal; era o antídoto da arrogância e orgulho. Noutras palavras poder-se-ia dizer como Salomão: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Ou como disse Schopenhauer: “Quão longa é a noite do tempo sem limites comparada com o curto sonho da vida!”[11].
            Por fim, consola-te, pois ela há de vir. Sobre isso Montaigne diz que “não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”[12].  Consola-te, pois...
  
BIBILIOGRAFIA

MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos. Trad. Mário Pagotto Marsola. São Paulo: Paulus, 2001.
REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais. Trad. Silvana Cobucci Leite. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso. São Paulo: DPL editora, 2007.
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo. Ediouro – (Coleção Universidade)


 
[1]  Graduado em Filosofia; Bacharelando em Direito ; Professor de Filosofia na rede pública de ensino do DF e autor de vários artigos nas áreas do Direito  e da Filosofia.
[2]  SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo, p. 127

[3]  Apud. REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais, p. 12
[4]  Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7
[5]  Apud, Idem, Ibidem, p. 16
[6]  Idem, p. 9 
[7]  REALE, Giovanni, Op. cit. p. 163
[8]  Apud SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso, (epígrafes)
[9]  Op. cit, p. 94 
[10] Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7
[11] Dores do mundo, p. 128
[12] Apud MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos, p. 81

**** Agradeço pela oportunidade de publicar este magnífico texto, de autoria do Professor e Filósofo José Fernandes P. Júnior.
MIGALHAS FILÓSOFICAS PARA LIBERTAÇÃO , publicada na ed. 20 de Filosofia Conhecimento Prático.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A entrevista, o desabafo e a verdade, por João Ricardo Santos Tavares *


Um indivíduo, numa discussão em um bar, com uma faca que lhe está à mão, mata seu desafeto. Outro, premido pela necessidade da sociedade de consumo, arromba a janela de nossa casa e de lá subtrai objetos que nos são caros e que compramos com o suor do trabalho. Ainda mais um é surpreendido em barreira policial trafegando com um veículo furtado, com placas falsas e sem documentos. Não bastasse, dirige à autoridade que lhe pede os documentos os piores impropérios. Aquela, desconfiada da atitude agressiva e despropositada, lhe pede que faça o exame de bafômetro porque crê esteja embriagado, e o motorista, indignado, apesar de tudo o que fez e de todos os indícios, nega-se a se submeter ao exame do etilômetro alegando que não é obrigado a fazer prova contra si porque a Constituição de 1988 isso lhe garante.

Finalmente, algum político em pleno exercício de seu mandato popular, com cuecas e meias espaçosas, é flagrado recebendo fartas cédulas de empreiteiro que realiza obra para o governo de então e se põe em seguida a rezar, agradecendo as benesses da vida favorecida que se descortina, ao mesmo tempo em que esconde as cédulas nos espaços generosos de suas peças íntimas.

Em todos os exemplos acima, meramente exemplicativos entre outros tantos que poderiam ser elencados, se processo criminal houvesse, jamais poderíamos pensar em condenação com prisão em regime fechado aos declarados culpados. Por quê? Por que falhou a polícia, seja civil ou militar, no seu mister constitucional de apurar a prática do delito? Falhou o agente do Ministério Público, a quem cabe dar início e seguimento ao processo criminal com a produção de provas, ou falhou o Judiciário, ao qual cabia punir exemplarmente o responsável pelo delito cometido, colocando-o atrás das grades?

Arrisco dizer que não falharam, no mais das vezes, nenhum desses agentes. Estou vizinhando com duas décadas de atuação como promotor de Justiça. Ao longo desses anos, conheci muitos profissionais do Direito. Alguns medíocres e outros tantos destacados, como em todas as instituições formadas por seres humanos. A maioria, entretanto, seguramente honestos e comprometidos com suas profissões. Todos, cidadãos de suas comunas. Pais e mães de famílias bem formadas. Moradores das cidades das suas vidas.

Aflitos pelas mesmas angústias de todos das soluções não vindas de nossas antigas e permanentes mazelas.

Daí por que não deveria surpreender a entrevista, em tom de desabafo, do comandante do 11º Batalhão da Brigada Militar de Porto Alegre, dizendo-se cansado das prisões que seus comandados efetivam e que a Justiça relaxa. Solta, não por capricho dos juí- zes, desídia dos promotores ou negligência dos policiais. Liberta pela leniência da legislação que nunca é reformada, embora todos digam saber que não atende mais aos anseios da sociedade e que só serve para desacreditar as instituições frente à população.

Enquanto não houver tal modificação, será essa a realidade. Prende e solta. Ou, o que é pior, nem prende.

Quem sabe, este ano de 2010, de eleições, não seja um marco para cobrarmos projetos concretos que mudem a realidade que a todos já cansa e não serve para o engrandecimento de nenhuma instituição comprometida com os interesses da sociedade?


* Promotor de Justiça

Fonte: Jornal Zero Hora
imagem em: blogdocastilho.blogspot.com/2009_12_01_archiv.

LinkWithin

Blog Widget by LinkWithin