sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A filosofia em seu bolso por Umberto Eco*

Vai ver que é porque as pessoas já não agüentam a TV-lixo, vai ver é porque no mundo acontece tanta coisa horrível que sentimos necessidade de alguns momentos de reflexão serena. Mas o fato é que estão se multiplicando os lugares e as oportunidades em que se torna a propor a filosofia ao grande público. Precisamente aquela filosofia do secundário, talvez num café em que as pessoas se reúnem aos domingos, como em Paris, ou por meio de vulgarizações de fácil leitura, às vezes fazendo acorrer um público inacreditavelmente amplo a salas onde filósofos profissionais discutem. Em tudo isso há um pouco de modismo e de simplificação midiática, claro, mas o sintoma não deve ser subestimado.

Por isso me ocorre fazer algumas propostas para os não-especialistas, e também para aqueles que não estudaram filosofia no secundário ou que foram ouvir as palestras de supostos filósofos e não entenderam nada. A todos eles, aconselho o caminho mais simples: ler o que escreveram os verdadeiros filósofos. Nem sempre a filosofia tem de parecer fácil, às vezes precisa ser difícil, mas não está escrito em lugar nenhum que é necessário falar difícil para filosofar. Na filosofia, a dificuldade da linguagem não é sinal nem de qualidade nem de perversidade, não raro depende do problema que está sendo abordado. Há obras-primas filosóficas que modificaram nosso modo de ser e de pensar e que são fatalmente difíceis, razão pela qual não convidarei ninguém que não seja especializado a ler Metafísica ou o Órganon de Aristóteles, a Crítica da razão pura, de Kant, ou aquele livro sublime, mas impraticável que é Ética, de Spinoza.

Mas há também filósofos que souberam falar de modo acessível, e freqüentemente são os mesmos que em outras obras falaram de modo inacessível. Por isso aconselho alguns livrinhos nos quais se vê como é possível filosofar sem usar muitos termos técnicos.

Comecemos por Platão. Gostaria de propor o Críton, com o qual aprendemos como e por que um cidadão não tem de escapar da observância às leis e, passando para Aristóteles, a Poética. Esqueçam que ela trata da tragédia clássica. Leiam-na como se nos descrevesse como se faz um romance policial ou um filme de bangue-bangue. Pois nosso homem já tinha entendido tudo aquilo que, mais de 2 mil anos depois, Hitchcock ou John Ford acabariam por compreender. Depois leiam o De Magistro, de Santo Agostinho. Livrinho genial por sua simplicidade e agudeza.
Mesmo sendo eu um cultor da Idade Média, acho difícil aconselhar um texto da grande era escolástica, porque poucas páginas, lidas fora de seu contexto sistemático, podem desencaminhar. Saltemos o fosso, o estritamente filosófico, e orientemos nosso leitor para o epistolário (o amoroso, é claro) de Abelardo e Heloísa. Não esperem muito sexo, mas vale a pena. Para o Renascimento, tentemos a Oração sobre a dignidade do homem, de Pico della Mirandola. Em seguida (mas só para antologia, e quantas há!), algumas passagens dos Ensaios, de Montaigne. São benéficos mesmo em doses homeopáticas.

Logo depois, o Discurso sobre o método, de Descartes, exemplar em sua clareza, seguido de uma antologia dos pensamentos de Pascal. E, por fim, um filósofo que escrevia como se estivesse conversando com os amigos, depois do jantar: culto e sensato, o John Locke do Ensaio sobre o intelecto humano. A obra toda é longa, mas sugeriria que nos limitássemos ao terceiro livro, aquele dedicado ao uso que fazemos das palavras. Como no caso de Aristóteles, leiam-no como se Locke nos falasse dos discursos de hoje, comparem suas observações com as primeiras páginas dos jornais e com os debates televisivos de nossos dias.

No tocante ao Iluminismo, eu ficaria por enquanto com o Cândido, de Voltaire; afinal, trata-se de um romancezinho, e muito agradável. O século XIX é um bicho feio, são livrões difíceis, mas só nós, os italianos, não consideramos o Zibaldone, de Leopardi, uma obra de alta filosofia. Também aí procedamos por saltos antológicos, uma pagininha ou duas à noite, antes de adormecer. Ou, então, lá vai uma proposta provocatória: já que Kant é, por definição, demasiado exigente, podemos flagrá-lo quando, para complementar o salário, dava aulas aos estudantes sobre temas que não eram da sua especialidade, e se mostrava divertido, bizarro, capaz de contar anedotas e expressar opiniões até paradoxais: ou seja, vamos ler suas lições de antropologia.

E depois? Depois, o Ecco! terminou, e deixo para lá os contemporâneos. A não ser que desejem, saltitando aqui e acolá, bebericar algumas das observações de Wittgenstein em (não se deixem assustar pelo título) Pesquisas filosóficas. De vez em quando dirão que era louco. Era louco, sim. Mas que louco!
*Umberto Eco é professor de semiologia da Universidade de Bolonha, na Itália, e autor, entre outros, de A misteriosa chama da rainha Loana, Baudolino, O nome da rosa e o pêndulo de Foucault

Fonte: Entre Livros - edição 5 - Setembro 2005

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